Travassos: O príncipe dos pobres

domingo, agosto 08, 2021

O príncipe dos pobres

 Em Trás-os-Montes o tempo passa mais devagar, como a câmara lenta de um documentarista. A paisagem é rude, agreste, por vezes deslumbrante no seu confronto com o céu e a água das fragas, dos riachos, das cascatas que massacram o xisto. As pessoas são iguais à paisagem: sólidas, quase intransponíveis, de princípios enraizados na terra difícil de semear, arar e colher. Há um orgulho primordial que pode transformar-se em teimosia é um instrumento de sobrevivência. Quem pisa o solo de Vila Real a Bragança, ou de Chaves a Vila Pouca, arrisca-se a pisar os sonhos dos transmontanos. ninguém lhes deu nada. Tiveram de lutar por cada vinha, cada nogueira, cada castanheira, cada olival. Num País pobre, o transmontano é o príncipe dos pobres. Generoso à mesa, implacável no negócio e mortal no ciúme - as caçadeiras e os revólveres ressoam nos armários à espera. Mas o transmontano não se limita a dar a camisa que tem no corpo a quem precisar dela. Também oferece a força dos braços e o engenho de uma vida de trabalho. Não há preguiçosos na Terra Fria ou na Terra Quente, embora haja desocupados crónicos, e alcoólicos - o álcool é o livre-trânsito da tristeza. Usam-se apelidos firmes como árvores centenárias, e qualquer habitante tem alcunhas. As amizades são para sempre, as zangas também. Basta um gesto brusco, ou uma palavra azeda. De um segundo para o outro arriscam-se 100 anos de solidão. Até a meteorologia é inflexível: os invernos comem a resistência dos fracos e os verões bebem de um trago a bazófia dos fortes. Os que superam a morte, ou a indiferença, contam histórias nas tabernas, nas igrejas, nos alpendres. Em Trás-os-Montes as histórias são como as cerejas, e tão sumarentas. Trás-os-Montes e o Alto Douro são mundos díspares, como água do vinho, ou os camponeses dos fidalgos. O douro respira prosperidade, o Douro é para os lordes. A vida além-montanha não é para os durienses. É para os duros. Não há província de nome mais primordial, e mágico: imagina-se um reino de cavaleiros de malha pesada, com capacetes em cruz, e castelos feitos de deuses. É uma terra dos diabos povoada por inocentes. o transmontano é o mais português dos portugueses. 

por Pedro Marta Santos in revista Sábado número 990 29 de julho 2021